segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Antropologia - Resumo do semestre

Por Felipe Becari Comenale


TEXTO 1 – SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO? - Roberto Damatta
Sabe com quem está falando?
• É cultural?
• Autoritário?
• Racismo?
• É natural? Variantes: Quem você pensa que é?
• Segregação social? Onde você pensa que está?
• Antipatia?

Ponha-se em seu lugar!
• É hierarquia?
• É um auto-retrato?
• Oposto do “jeitinho brasileiro” (ver posteriormente neste estudo)

Existem pelo menos três formas básicas de apresentação (e representação) ritual da sociedade brasileira: o carnaval, a Semana da Pátria e as procissões religiosas da Igreja Católica Romana, e todas estão oficialmente vinculadas à sociedade e à cultura brasileiras através de alguns órgãos do Estado, sendo coletivamente bem marcadas, festividades e ocasiões de profunda motivação político-social.

Outro ritual brasileiro é o “sabe com quem está falando?”, que implica sempre uma separação radical e autoritária de duas posições sociais real ou teoricamente diferenciadas.

O “sabe com quem está falando?”, além de não ser motivo de orgulho para ninguém, dada a carga considerada antipática e pernóstica da expressão, fica escondido de nossa imagem (e auto-imagem) como um modo indesejável de ser brasileiro, pois que revelador do nosso formalismo e da nossa maneira velada (e até hipócrita) de demonstração dos mais violentos preconceitos.

O “sabe com quem está falando?” é a negação do “jeitinho”, da “cordialidade” e da “malandragem”.

A forma de interação batizada pelo “sabe com quem está falando?” parece estar mesmo implantada – ao lado do carnaval, do jogo do bicho, do futebol e da malandragem – no nosso coração cultural. O que ela não tem é uma data fixa e coletivamente demarcada para seu uso ou aparecimento. Temos então dois traços muito importantes no “sabe com quem está falando?”, sendo:

1) Um deles é o aspecto escondido ou latente do uso (e aprendizado) da expressão, quase sempre vista como um recurso escuso ou ilegítimo à disposição dos membros da sociedade brasileira. Consideramos a expressão como parte do “mundo real”, da “dura realidade da vida”.
2) Outro traço do “sabe com quem está falando?” é que a expressão remete a uma vertente indesejável da cultura brasileira. Pois o rito autoritário indica sempre uma situação conflitiva, e a sociedade brasileira parece avessa ao conflito. Tudo indica que, no Brasil, concebemos os conflitos como presságios do fim do mundo, e como fraquezas – o que torna difícil admiti-los como parte de nossa história, sobretudo na suas versões oficiais e necessariamente solidárias.

Temos, assim, que encarar o “sabe com quem está falando?”, interpretando a expressão como um rito de autoridade – um traço sério e revelador da nossa vida social. Se inibimos ou escondemos dos olhos do estrangeiro ou do inocente o “sabe com quem está falando?”, deixando de integrá-lo em nossa visão corrente do que é o Brasil, é certamente porque o rito revela conflito, e somos avessos à crise. Mas o termo, é claro, denuncia um sistema social extremamente preocupado com “cada qual no seu lugar”, isto é, com hierarquia e com a autoridade. O mundo tem de se movimentar em termos de uma harmonia absoluta, fruto evidente de um sistema dominado pela totalidade, que conduz a um pacto profundo entre fortes e fracos. É, portanto, nesse sistema de dominação em que ocorre o conflito aberto é evitado que encontramos, dentro mesmo da relação entre superior e inferior, a idéia de consideração como valor fundamental. Nesse quadro, o conflito não pode ser visto como um sintoma de crise no sistema, mas como uma revolta que deve e precisa ser reprimida.

Nunca tomam a expressão como a atualização dos valores e princípios estruturais de nossa sociedade, mas sempre como a manifestação de traços pessoais indesejáveis. Neste sentido, o “sabe com quem está falando?” seria como o racismo e o autoritarismo: algo que ocorre entre nós por acaso, sendo dependente apenas de um “sistema” implantado pelos grupos que detêm o poder. Mas a situação é muito mais complexa...

Em pesquisas, foi notado que, tal como nos casos das pesquisas sobre preconceito racial, todos consideram o preconceito indesejável, mas em situações concretas especificas todos se revelam racistas. Ora, o que o estudo do “sabe com quem está falando?” permite realizar é a descoberta de uma espécie de paradoxo numa sociedade voltada para tudo o que é universal e cordial, a descoberta do particular e do hierarquizado. E essa descoberta se dá em condições peculiares: há uma regra que nega e reprime seu uso. Mas há uma prática igualmente geral que estimula o seu emprego.

Pesquisa universitária sobre o “sabe com quem está falando?”:

Todos os informantes da pesquisa indicavam que eram inúmeras as situações em que se podia usar o “sabe com quem está falando?”, mas era evidentemente possível especificar momentos típicos, quando a fórmula seria empregada. Em uma escala de importância, o uso do “sabe com quem está falando?” submete-se geralmente no indivíduo quando:
a) Sentir sua autoridade ameaçada (ou diminuída)
b) Desejar impor de forma cabal e definitiva seu poder
c) Inconsciente ou conscientemente perceber no seu interlocutor uma possibilidade de inferiorizá-lo em relação ao seu status social
d) For pessoa interiormente fraca ou que sofre de complexo de inferioridade
e) O interlocutor, de uma forma ou de outra, é percebido como ameaça ao cargo que ocupa

Fica assim revelada uma enorme preocupação com a posição social e uma tremenda consciência de todas as regras (e recursos) relativas à manutenção, perda ou ameaça dessa posição. Isso, portanto, leva à aplicação do “sabe com quem está falando?” de forma intensa na sociedade.

Os costume e praxes estabelecidos pela primeira classe da sociedade servem de modelo a todas as outras, cada uma das quais, por sua vez, estabelece seu código próprio, a que todos os seus membros são obrigados a obedecer. Assim, as regras de polidez formam um complexo sistema de legislação, difícil de ser dominado perfeitamente, mas do qual é perigoso para qualquer um desviar-se, por isso, os homens estão constantemente expostos a infligir ou receber, involuntariamente, afrontas amargas. Por isso aqui, o “sabe com quem está falando?” é sim, AUTORITÁRIO. Assim, tem o peso de uma lei, com seu conjunto formando uma legislação.

A utilização do “sabe com quem está falando?” é extensa. Não existem o que podemos chamar de “posição social geral”, com todos os “inferiores estruturais” mencionados dizendo que não tinham a menor idéia do emprego da expressão e que tomavam como uma simples pergunta a ser feita quando alguém desejava se dar a conhecer. E havia também subalternos que tinham recebido e usado o “sabe com quem está falando?”, muitos frisando como uma espécie de ponto de honra o fato de nunca terem recebido tala admoestação. O mesmo ocorre com as crianças. Deste modo, são fartos os exemplos do empregado usando o ritual de afastamento do seguinte modo: “Sabe com quem está falando? Eu sou o motorista do Ministro!”. Essas são as reações verticais intensas... O poder da identificação vertical é proporcional à “altura social” do dominante. Quanto mais alta, mais ganha impacto o “sabe com quem está falando?”. As crianças também usam, ou você nunca ouviu: “Sabe com quem está falando? Sou o filho do fulano!”.

Esses casos revelam que os inferiores estruturais não deixam de usar o “sabe com quem está falando?”, que não é exclusivo de uma categoria, grupo, classe ou segmento social. LOGO, É DEMOCRACIA.

Então, ao lado da perspectiva compensatória e complementar que busca (mas nem sempre obtém) a igualdade, temos a atitude hierarquizante que diferencia os iguais. O sistema (Estado) iguala num plano e hierarquiza no outro, o que promove uma tremenda complexidade classificatória, um enorme sentimento de compensação e complementaridade, impedindo certamente a tomada de consciência social horizontal, fortalece a vertical. É geralmente mais fácil (muito mais) a identificação com o superior do que com o igual, geralmente cercado pelos medos da inveja e da competição, o que, entre nós, dificulta a formação de éticas horizontais.

O “sabe com quem está falando?”, então, por chamar a atenção para o domínio básico da pessoa (e das relações pessoais), em contraste com o domínio das relações impessoais dadas pelas leis e regulamentos gerais, acaba por ser uma fórmula de uso pessoal, desvinculada de camadas ou posições economicamente demarcadas. Todos têm o direito de se utilizar do “sabe com quem está falando?”, e sempre haverá alguém para recebê-lo...

No “sabe com quem está falando?” e nas outras VARIANTES (início do texto), nota-se que a maioria dessas expressões assumem uma forma interrogativa, o que, no Brasil, surge como um modo evidentemente não cordial, pois em nossa sociedade, a indagação está ligada ao inquérito, forma de processamento jurídico acionado quando há suspeito de crime ou pecado, de modo que a pergunta deve ser evitada. Sem a interrogação, a vida social parece correr no seu fluxo normal. A pergunta pode configurar uma tentativa de tudo revolucionar. Por isso, somos socializados aprendendo a não fazer muitas perguntas, desde a escola, já que a pergunta parece muitas vezes um ato “agressivo”.

Diante da lei geral e impessoal que igualava juridicamente, o que fazia o membro dos segmentos senhoriais e aristocráticos? Estabelecia toda uma corrente de contra-hábitos visando demarcar as diferenças e assim retomar a hierarquização do mundo nos domínios onde isso era possível
Somos muito mais substantivamente dominados pelos papéis que estamos desempenhando do que por uma identidade geral, que nos envia às leis gerais, portanto, na medida em que as marcas de posição e hierarquização tradicional, como a bengala, as roupas de linho branco, os gestos e maneiras, o anel de grau e a caneta-tinteiro no bolso de fora do paletó se dissolvem, incrementa-se imediatamente o uso da expressão separadora de posições sociais para que o igualitarismo formal e legal, mas evidentemente cambaleante na prática social, possa ficar submetido a outras formas de hierarquização social.

Ou seja, não adianta a lei tentar igualar, pois a sociedade cria subdivisões sociais. A lei apenas nos separa materialmente...

Desta forma, reagimos de modo radicalmente diverso dos americanos diante da esmagadora igualdade jurídica que veio com a Abolição da escravidão em ambos os países. Lá, criou-se imediatamente um contra-sistema legal para estabelecer as diferenças que haviam sido legalmente abolidas; era o racismo em ideologia. No Brasil, porém, a esfera em que as diferenças se manifestam foi a área das relações pessoais, um domínio certamente ambíguo porque permitia hierarquizar na base do “sabe com quem está falando?”, e deixava os flancos abertos para escolhas pessoais e múltiplas classificações. Preferimos utilizar o domínio das relações pessoais – essa área não atingida pelas leis, como local privilegiado para o preconceito que, entre nós, como têm observado muitos pesquisadores, tem um forte componente estético (ou moral) e nunca legal.

TEXTO 2 – DAS DISTINÇÕES ENTRE INDIVÍDUO E PESSOA – Roberto Damatta

No sistema brasileiro é básica a distinção entre o INDIVÍDUO e a PESSOA como duas formas de conceber o universo social e nele agir. Um dos denominadores comuns de todas as situações, porém, é a separação ou diferenciação social, quando se estabelecem as posições das pessoas no sistema social.

No Brasil, tudo indicada que a expressão permite passar de um estado a outro: do anonimato (que revela a igualdade e o individualismo) a uma posição bem definida e conhecida (que expressa a hierarquia e a pessoalização). De uma situação ambígua e, em princípio, igualitária, a uma situação hierarquizada, onde uma pessoa deve ter precedência sobre a outra. Em outras palavras, o “sabe com quem está falando?” permite estabelecer a pessoa onde antes só havia um indivíduo.

As noções de indivíduo e de pessoa são fundamentais na análise sociológica. A noção de pessoa surgiu claramente com Marcel Mauss (1974), num artigo clássico de um personagem (nas sociedade tribais) sendo progressivamente individualizada até chegar à idéia da pessoa como “ser psicológico” e altamente individualizado. A idéia de Mauss de que a pessoa era de fato um ponto de encontro entre a noção de indivíduo psicológico e uma unidade social. Mas é importante observar que,para ele, a noção de pessoa desembocava na idéia de indivíduo. A noção de indivíduo é também social. Em seguida, deseja revelar que a noção de indivíduo pode ser posta em contraste com a idéia de pessoa (também uma construção social), que exprime outro aspecto da realidade humana. E, finalmente, espera-se mostrar como as duas noções permitem introduzir na análise sociológica o dinamismo necessário para poder revelar a dialética do universo social com uma larga aplicação, sobretudo no caso do Brasil. Assim, o sociológico, ou melhor, o social, é aquilo que é tomado de empiricamente elaborado por alguma entidade, de modo que ela possa tomar uma posição ou criar uma perspectiva.

Aproxima-se da definição de indivíduo: ênfase ao “eu individual”, repositório de sentimentos, emoções, liberdades, espaço interno, capaz, portanto de pretender a liberdade e a igualdade,sendo a solidão e o amor dois de seus trações básicos, e o poder de optar e escolher, um dos seus direitos mais fundamentais. Nessa construção – que corresponde à construção ocidental – a parte é, de fato, mais importante do que o todo. E a noção geral, universalmente aceita, é a de que a sociedade deve estar a serviço do indivíduo.
Aproxima-se da definição de pessoa: é o indivíduo natural ou empiricamente dado é a elaboração do seu pólo social. Aqui, a vertente desenvolvida pela ideologia não é mais a da igualdade paralela de todos, mas da complementaridade de cada um para formar uma totalidade que só pode ser constituída quando se tem todas as partes. Em vez de termos a sociedade contida no indivíduo, temos o oposto: o indivíduo contido e imerso na sociedade. É essa vertente que corresponde à noção de pessoa como entidade capaz de remeter ao todo, e não mais à unidade, e ainda como o elemento básico por meio do qual se cristalizam relações essenciais e complementares do universo social.

Ocorre apenas que a noção de indivíduo como unidade isolada e auto-contida foi desenvolvida no Ocidente, ao passo que nas sociedades holísticas, hierarquizantes e tradicionais, a noção de pessoa é a dominante. Pode-se agora ver com clareza que o lugar do indivíduo – em oposição ao lugar da pessoa – é nos sistemas onde não existem segmentos tradicionais são associações.:

INDIVÍDUO X PESSOA

Livre, tem direito a um espaço próprio X Presa à totalidade social à qual se vincula de modo necessário

Igual a todos os outros X Complementar aos outros

Tem escolhas, que são vistas como seus X Não tem escolhas
Direitos fundamentais

Tem emoções particulares. A consciência X A consciência é social (isto é, a totalidade tem
é individual precedência).

A amizade é básica no relacionamento X A amizade é residual e juridicamente definida
escolhas

Faz as regras do mundo onde vive X Recebe as regras do mundo onde vive

Não há mediação entre ele e o todo X A segmentação é a norma

TEXTO 3 – O JEITINHO BRASILEIRO

Segundo Roberto Damatta, um dos dilemas básicos da sociedade brasileira é o conflito constante entre as categorias indivíduo X pessoa, expressões de duas vertentes ideológicas centrais do nosso sistema – o individualismo e a hierarquia. Segundo ele, a antipática locução “sabe com quem está falando?” expressaria justamente nossa vertente hierárquica e autoritária, ao passo que o jeitinho encarnaria nosso lado cordial, tão valorizado por nós, dessa mesma vertente.

O “sabe com quem está falando?” ocorre para colocar “cada um no seu devido lugar”, através da hierarquização através do conflito diante de uma situação de face terrível.

No caso do jeitinho, a caracterização não é tão fácil, embora a expressão seja universalmente conhecida e utilizada. Pode ser uma situação de confronto entre uma norma ou a pessoa que a representa e um indivíduo; ou pode ser uma solução individual e criativa para uma determinada situação.
Conceitos chave do “jeitinho”: Outras diferenças ilustrativas podem ainda ser estabelecidas entre as duas locuções. Enquanto o “sabe com quem está falando?” é um ritual de separação, radical e autoritário, de duas posições sociais e, como tal, a negação do jeitinho, da “cordialidade” e da “malandragem” e de todos os aspectos tomados como paradigmáticos em diversas situações para definir o “nosso povo”, a “nossa gente”, o nosso país, o jeitinho poderia ser visto como um ritual de aglutinação. Ele procura justamente juntar, e não separar, os participantes da situação. É destituído de qualquer traço de autoritarismo, pois sua eficácia reside, como já vimos justamente no seu aspecto formal, ou seja, da maneira de pedir o jeito, que se espera ser simpática, cordial, igualitária, etc. E mais, ao invés de marcar as diferenças existentes entre as pessoas, que podem ou não existir do ponto de vista social, ele procura justamente anulá-las, invocando a igualdade entre todos e da própria condição humana.

Por outro lado, se o “sabe com quem está falando?” é uma expressão execrável, antipática, cujo aprendizado é implícito, considerada recurso ilegítimo à disposição dos membros desta sociedade e escamoteada como parte de nossa realidade, o jeitinho circula na direção oposta.

Outro aspecto que contrasta bastante com o “sabe com quem está falando?” é que, enquanto a última locução não pode ser usada por todos – pois nem todos podem sacar do bolso do colete uma identidade no seu lugar – o jeitinho pode e é utilizado democraticamente por todos. Ninguém precisa ser deputado, general, esposa de senador ou empregada de figura de alta sociedade para alcançar seus objetivos através do jeitinho. Ele pode ser dado e conseguido tanto pelo operário como pelo patrão. Qualquer um pode acioná-lo sem ter que lançar mão de sua identidade social. Assim, para o jeitinho, os “cargos” e posições sociais são anulados.

Outro aspecto envolvendo a questão do anonimato é que, enquanto no jeitinho a situação pode começar a terminar anônima, no “sabe com quem está falando?” essa possibilidade está inteiramente excluída. Uma vez acionado este mecanismo, o anonimato, responsável pela igualdade, desaparecerá, para dar lugar ao desvendamento da posição de cada um em nosso esqueleto social, restabelecendo-se, assim, a desigualdade.

É importante, ainda, destacar neste nosso exercício comparativo que o jeitinho é uma relação puramente individual, pois não envolve nada além do que o eu e o outro. No jeitinho, você entra despojado de suas relações mais amplas com a sociedade. Como complemento, é legal descrever os sujeitos típicos do jeitinho: Malandro: elemento intersticial entre dois mundos, um ser quase marginal. Carioca: no conjunto das representações dos tipos brasileiros, encarna a vertente de um Brasil lúdico, preguiçoso, sensual, cheio de manhas e manias, deixando o sucesso econômico e social para o paulista.

Diferenças marcantes também são encontradas nas reações ao uso de cada uma dessas expressões. A pessoa que faz uso do “sabe com quem está falando?” está sujeita a ser motivo de riso, deboche e total desaprovação, arriscando-se a levar um “quem você pensa eu é?”. Por outro lado, o usuário do jeitinho nunca é alvo de uma censura enfática, nem se torna motivo de chiste ou galhofa. O máximo de que pode ser objeto é uma desaprovação condescente que, na maioria das vezes, passa despercebida, por ser quase inconsciente, ou simplesmente recebe a aprovação geral.

E, finalmente, enquanto o jeitinho suscita uma atitude de reciprocidade difusa positiva – “se surgir a oportunidade darei jeitinho também para alguém – o “sabe com quem está falando?” suscita uma reciprocidade direta negativa pois sempre se espera que, um dia, o “cara leve o troco” da humilhação que infligiu ao tentar “ganhar” de alguém com base nas desigualdades sociais existentes. Pela mesma lógica, enquanto o “sabe com quem está falando?” estabelece sempre uma relação negativa entre os participantes desse drama social, no jeitinho a relação tem sempre caráter positivo.

“SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?” X JEITINHO

Faz uso da autoridade e do poder X Faz uso da barganha e da argumentação

Parte do pressuposto que as desigualdades X Parte do pressuposto igualitário
Sociais têm valor

Não é acessível a todos da sociedade em todas X É acessível a todos da sociedade
as situações

A identidade social dos participantes sempre X Pode começar/terminar anonimamente
termina desvendada.

Baseia-se, para sua eficácia, na identidade social. Não depende, exclusivamente, de laços X
Faz uso dos laços com a sociedade mais profundos com a sociedade. Depende basicamente de atributos individuais, da personalidade

Não é conhecido por todos da sociedade X É conhecido por todos da sociedade

É um rito de separação X É um rito aglutinador

A reação ao uso da expressão é sempre enfática X A reação ao uso da expressão é
e negativa predominantemente positiva, a negativa é sempre expressa de forma branda

Suscita reciprocidade direta e negativa X Suscita reciprocidade difusa e positiva

Possui um ritual simétrico oposto X Não possui qualquer situação social que seja a sua simétrica inversa

Estabelece sempre uma relação negativa X Estabelece sempre uma relação positiva


Por fim, tanto o jeitinho como o “sabe com quem está falando?” só podem existir em universos sociais contaminados pela ótica individualista, impessoal, igualitária e anônima.

Tanto um como outro ilustram igualmente um drama social em que a existência de uma lei ou norma universalizante exige o desempenho de um papel específico, o de indivíduo-cidadão, sujeito à impessoalidade da lei, mas em que o agente deseja ser percebido e julgado por outro tipo de conduta e papel, que vai justamente de encontro ao designado pela lei. Em suma, ambos são mecanismos de transformação de indivíduos em pessoas.

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